Na análise tudo se pode dizer sem vergonha e tudo se pode sentir sem pudor, assim como tudo se pode pensar sem culpa, medo ou sensação de ridículo. E é esta liberdade (quando atingida, porque vencidas as resistências) que dá ao processo analítico a dimensão da experiência extraordinária, que sai dos moldes do quotidiano, do ordinário.
Coimbra de Matos

Nos bastidores da mente

Os nossos cérebros são tão eficientes e silenciosos nas suas operações diárias que podemos perder a noção de quão extraordinário e complicado é esta coisa aparentemente tão simples de nos sentirmos mentalmente bem , do ponto de vista psíquico. Uma mente saudável realiza continuamente, em segundo plano, um conjunto quase milagroso de manobras que regulam o nosso estado de humor, a nossa clarividência e sentido de propósito.

Para avaliar o que pode ser a saúde mental (e, por conseguinte, o seu oposto) poderemos considerar algumas das coisas que estarão a acontecer nos bastidores de uma mente em pleno funcionamento:

1. Faz um constante processo de filtragem:

Faz a separação entre os milhares de pensamentos dramáticos, desconcertantes ou trágicos que vagueiam no nosso íntimo, distinguindo-os das ideias e sensações específicas que precisamos ativamente de captar para conduzirmos a nossa vida de forma eficaz.

2. Mantém afastados julgamentos punitivos e críticos:

Quando estamos numa entrevista de emprego ou numa saída com alguém, uma mente saudável não nos leva a ouvir vozes interiores que insistem na nossa falta de valor. Pelo contrário, leva-nos a falar conosco próprios como falaríamos com um amigo.

3. Resiste à tentação das comparações injustas:

Não permite que as conquistas e sucessos dos outros nos desviem do nosso caminho ou nos reduzam a um sentimento de incapacidade. Não estabelece comparações com outros que tiveram condições e trajetórias de vida muito diferentes. Reconhece a crueldade e despropósito de procurar falhas de forma constante na sua natureza.

4. Mantém o controlo sobre a torneira do medo:

Uma mente saudável sabe que há uma infinidade de coisas com as quais poderíamos preocupar-nos: um vaso sanguíneo pode rebentar, um escândalo pode explodir, o motor do avião pode falhar... Mas faz uma boa distinção entre o que poderia acontecer e o que é provável que aconteça. E evita a imaginação de cenários catastróficos, acreditando de que as coisas mais terríveis não acontecerão ou que saberá lidar com elas, se alguma vez acontecerem.

5. Possui compartimentos com portas sólidas, que fecham com segurança:

Pode compartimentar quando for necessário. Nem todos os pensamentos pertencem a todos os momentos: ao conversar com uma avó, a mente evita o surgimento de imagens de fantasias eróticas da noite anterior; enquanto cuida de uma criança, pode reprimir as suas percepções mais cínicas e misantrópicas. Pensamentos extravagantes como saltar para a linha do comboio ou cortar-se com uma faca afiada podem permanecer breves flashes peculiares, em vez de fixações repetitivas. Uma mente saudável domina as técnicas de censura.

6. Consegue abstrair-se das suas inquietações: 

Consegue concentrar-se no mundo à sua volta, estar presente na realidade exterior, envolver-se com o mundo, para além de si própria. Consegue ser uma boa ouvinte e estar disponível para o outro. Nem tudo o que se pode sentir precisa de ser sentido a cada momento. 

7. Conjuga uma suspeição adequada em relação a certas pessoas com a confiança fundamental na humanidade:

Pode escolher correr um riscos com um estranho. Não faz uma extrapolação da experiência com os piores momentos da sua vida para destruir a possibilidade de acreditar que algo de bom possa surgir em novas situações, com um novo conhecido.

8. Consegue ter esperança:

Naturalmente que existem razões para o desespero, a raiva e a tristeza em todo o lado, mas a mente saudável consegue colocar a negatividade entre parênteses e encontrar motivos para continuar. Agarra-se à evidência de tudo o que ainda é belo e gentil e lembra-se de apreciar. Pode – apesar de tudo – ainda ansiar por um banho quente, um punhado de frutos secos ou uma tablete de chocolate, uma conversa com um amigo ou um dia de trabalho gratificante. Recusa-se a deixar-se silenciar por todos os muitos argumentos sensatos a favor da raiva e do desespero.

Descrever as características de uma mente saudável ajuda-nos a identificar o que pode correr mal quando adoecemos. Devemos reconhecer até que ponto a doença mental é, em última análise, tão comum e natural como a doença corporal. A verdadeira saúde mental envolve uma aceitação genuína de todos os problemas e dificuldades que possam existir, mesmo na vida mais competente e significativa. E não deveríamos ter mais dificuldade em procurar ajuda do que perante uma infeção respiratória ou uma dor no joelho, nem deveríamos sentir-nos menos capazes ou menos dignos de amor por isso.

Tradução / Adaptação do texto What is Mental Health?

O medo da rejeição

A necessidade de um objeto bom leva à idealização do objeto - com negação das suas propriedades más - e ao recalcamento do ódio para com esse objeto: por medo de perder em maior extensão o amor do objeto (receio de abandono e / ou rejeição), por culpabilidade (sentimento, em regra injustificado, de ser ele próprio o culpado), por medo de uma retaliação agressiva da parte do objeto, pelo receio de ser considerado pelos outros como o mau (manter a imagem de bom), pelo medo, portanto, de ser rejeitado não só pelo objeto em causa, como pelo mundo objetal em geral (ser detestado por toda a gente, ser marginalizado).

Com efeito, uma das mais graves consequências da relação com um objeto sádico, controlador, culpabilizante e inferiorizante é a debilitação do Eu com destruição da sua capacidade de oposição e luta, da coragem e da confiança na sua própria força.

Só um lento e persistente trabalho de análise e perlaboração permite a manutenção do movimento progressivo de deflaxão da agressividade e afirmação do Eu, vencendo os medos e as culpas, o hábito masoquista e a rotina depressivante. O medo da retaliação do mundo, sob as mais variadas formas, assim como a imensa culpabilidade inconsciente (de tão ameaçado e culpabilizado que foi) são enormes e a sua ultrapassagem e expulsão exigem um labor interpretativo intenso e aturado e um contínuo, mas lento crescimento do Eu, com uma progressiva consolidação da confiança em si próprio e na sua força e capacidade de confrontação com o mundo e com os outros.

Adaptado a partir de Coimbra de Matos, in Análise Psicológica, 1983 4(III): 409-424